quinta-feira, 31 de março de 2011

Harvard, o sonho possível
Primeira mulher a comandar universidade mais tradicional dos EUA visita São Paulo e diz que dinheiro não é barreira à admissão de brasileiros
Estadão.edu
Harvard está de olho em você. E, sim, você pode estudar lá, parafraseando Barack Obama – que, por sinal, cursou Direito na universidade. A reitora da tradicional instituição americana, Drew Faust, visitou São Paulo na semana passada. Veio conversar com acadêmicos, empresários e estudantes. Para os alunos, deixou uma mensagem clara: “Queremos abrir as portas para os melhores estudantes, quaisquer que sejam seu passaporte e situação social. Não deixamos que o aspecto financeiro seja uma barreira.” Reitora desde 2007, a historiadora Drew é a primeira mulher a comandar Harvard, fundada em 1636. Na sua gestão deu impulso à internacionalização da universidade – o Brasil é o décimo país visitado por ela. E enfrentou um grande desafio: a crise financeira de 2008, que fez secar doações particulares e de empresas, uma das grandes fontes de receita das universidades americanas. Apesar disso, o orçamento de Harvard ainda é mais do que confortável para os padrões brasileiros: US$ 3,7 bilhões.

A reitora garantiu que o abalo dos mercados não afetou os estudantes, porque o auxílio financeiro para eles foi eleito a prioridade número 1 da universidade. Entre os alunos undergraduate (equivalente à nossa graduação), 62% recebem esse apoio atualmente. Estudantes com famílias que ganham menos de U$ 60 mil (cerca de R$ 100 mil) por ano não pagam anuidade. Para aqueles cujos pais ganham até US$ 185 mil (cerca de R$ 300 mil) por ano, o desembolso máximo equivale a 10% da renda. “Não
queremos que os aprovados em Harvard pensem: ‘Meu Deus, peguei uma época dura’”, disse Drew. Ela admitiu uma só mudança. “Temos um café da manhã menos elaborado para os alunos da graduação. Fui conferir e o tal café é quatro vezes maior do que o que tomo em casa. Acho que foi uma mudança perfeitamente suportável”, brincou. Com uma agenda apertada, que incluiu visitas à Pinacoteca e ao Mercado Municipal, a reitora participou basicamente de eventos para convidados. Um deles foi um seminário realizado na quarta-feira, no Insper, na Vila Olímpia, zona sul, promovido pela Fundação Estudar, que apoiou a vinda da comitiva de Harvard ao País. Criada pelos ex-sócios do Banco Garantia e controladores da Ambev, a fundação dá bolsas a estudantes brasileiros selecionados para as melhores universidades do mundo. Um dos patronos da fundação, Jorge Paulo Lemann, de 71 anos, contou no evento sobre sua passagem por Harvard, onde se formou em Economia em 1961. Uma experiência que começou de forma bem pouco convencional. “Jogava muito tênis e surfava muito. Estudava pouco”, disse. “Meu primeiro ano em Harvard foi um horror.” E terminou ainda pior: Lemann foi flagrado atirando bombinhas pela janela do dormitório no fim do ano.

No ano seguinte, o brasileiro desenvolveu um “sistema”. Ouvia ex-alunos e professores antes de escolher as disciplinas, para descobrir o foco do curso. “Descobri que as provas passadas eram arquivadas na biblioteca”, contou.
E descobri que o professor em geral repete as perguntas das provas.” A performance de Lemann melhorou sensivelmente. “Passei para o grupo dos melhores.” Apesar de achar que poderia ter aprendido mais, Lemann considera a passagem pela universidade americana fundamental. “Descobri o poder das ideias”, disse. “Ter um sonho grande dá o mesmo trabalho que ter um sonho pequeno.” Quem ainda não teve contato tão direto sonha ainda mais com Harvard. Deborah Alves, de 18 anos, terminou o ensino médio em 2010 e aplicou para Engenharia no MIT e em Harvard. A primeira já deu sinal verde, e agora ela aguarda resposta de Harvard, que pode sair a qualquer momento. “Deu para ter uma ideia melhor de como é uma aula de Harvard. Acho que prefiro o MIT, mas fiquei bem na dúvida, porque a apresentação do professor Howard Stevenson deu uma boa noção de como é uma aula naquela universidade", disse a estudante, que esteve na apresentação no Insper. "MIT é mais de Engenharia que Harvard, que é mais focada em humanas.” Lucas Hernandes, de 16 anos, está no 3.º ano do ensino médio e já foi por duas vezes medalhista de ouro e uma vez de prata na Olimpíada Brasileira de Física. Ele afirma que gostou da aula do professor Stevenson, especialmente pela forma original como foi tratado o tema ‘sucesso’. “Achei genial a ideia dele de falar dos malabares como metáfora para administrar a vida e a carreira, encaixa-se perfeitamente na realidade. Ele tem uma pegada diferente para falar de assuntos já gastos.”
Interdisciplinar
Coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV do Rio, Ronaldo Lemos, de 34 anos, fez mestrado em Direito em Harvard em 2002. Lá, juntou-se a um grupo que discutia direitos autorais no mundo digital, área na qual o brasileiro é hoje referência internacional. Um aspecto positivo que Lemos ressaltou da universidade foi o caráter interdisciplinar do mestrado, algo que, no seu entender, falta ao ambiente acadêmico do Brasil. “Pesquisa tem de fazer interlocução com políticas públicas e empresas. Faltam pesquisas comprometidas não com o problema, mas com a solução.” Outro participante do seminário foi o reitor da USP, João Grandino Rodas. Ele estudou em diversas instituições dos Estados Unidos e da Europa, mas garante que a passagem pela universidade hoje comandada por Drew foi especial. “A despeito da excelência desses locais, minha estada em Harvard, cursando as matérias que me deram o título de mestre em Direito, em 1978, foi a experiência mais intensa”, afirmou. “Harvard, além de ser uma universidade, é um modo de ser, um estado de espírito, que segue seus antigos alunos por toda a vida.” Na quinta-feira, a reitora teve outro encontro com estudantes que passaram pela universidade americana, dessa vez na Faculdade de Medicina da USP. Definiu depois o grupo como “impressionante”.

Ela foi super acessível”, disse Natascha Silva Sandy, de 24 anos, do último ano de Medicina. “Pediu para a gente contar o que achamos das aulas e como fomos recebidos pelos alunos de lá.” Natascha esteve em Harvard em 2009, fazendo pesquisas em poluição ambiental e urologia. “Os professores elogiavam a gente, diziam que os brasileiros trabalham demais, têm capacidade de resolver coisas”, disse. “As pessoas importantes de lá, de professores a chefes de departamento, são muito mais acessíveis do que aqui. Eles têm uma mentalidade de que o professor ganha no contato com o aluno.” Natascha também viu diferenças nos projetos de pesquisa. “Aqui eles meio que nascem prontos. O professor já tem na cabeça todas as etapas e, às vezes, até o resultado”, disse. “Lá o projeto começa e pode depois tomar uma direção diferente. Se as perspectivas forem interessantes,
tudo bem.” Yasser Calil, de 28, colega de Natascha, também participou de pesquisas sobre poluição ambiental em 2009 em Harvard. Teve um bom exemplo de como os professores são acessíveis com Eric Kandel, ganhador do Nobel de Medicina de 2000. “Depois da aula procurei o Kandel e ficamos conversando. A certa altura, ele contou que os professores estavam em um coquetel e disse: ‘Vamos lá, vamos continuar falando.’”

Quando embarcou para sua primeira viagem internacional, Yasser estava preocupado. “Tinha medo de ser mal recebido, por conta do sobrenome árabe. Pensava: ‘Lá o pessoal é muito exigente e eu sou do Terceiro Mundo.’ Foi tudo ao contrário. Fui tratado muito melhor do que no Brasil, na imigração, pela polícia, pelas pessoas nas ruas”, contou. “Na parte científica, tinha muita liberdade no laboratório. Minhas ideias eram sempre muito bem aceitas. Ao contrário do que acontecia aqui, onde eu sempre fui muito podado.” Iberê Datti, de 25 anos, aluno do 4.º ano de Medicina na USP, esteve em 2009 em Harvard e foi colocado diante de desafios de pesquisa que não encontrou no Brasil. “Trabalhei numa investigação sobre os efeitos de um fármaco no funcionamento do coração. Com o orientador e outros estudantes, aprendi a escrever um paper, a importância da pesquisa e a discussão sobre os resultados. Publicamos no New England Journal of Medicine, foi muito marcante ver meu nome lá”, recorda. Ele ressalta que, além da imersão em outra cultura, aumentou suas chances de tornar a estudar por lá. “Foi uma experiência de vida esta troca de culturas e o convívio com pessoas de outra etnia. Além de fazer contatos no exterior e ter alguns canais abertos para conseguir cartas de recomendação, algo que faz diferença, caso queira voltar.”

Duas mãos. Globalizada pela mistura de nacionalidades no seu campus em Cambridge, perto de Boston, Harvard tem incentivado estudantes e professores a participar de programas científicos no exterior, para conhecer outras realidades. No Brasil, esse processo é capitaneado pelo escritório aberto pela universidade há cinco anos em São Paulo. Uma das experiências bem-sucedidas foi a criação 
de cursos de férias, com professores e estudantes daqui e do exterior. “Dos dois lados é uma coisa transformadora”, diz Jason Dyett, diretor de programas do escritório. Um exemplo da transformação citada por Dyett ocorreu com Ana Gilbertoni, que fez o primeiro curso colaborativo, na área de saúde pública, em janeiro de 2008. “Ela conheceu professoras de Harvard que ficaram impressionadas com sua capacidade. Uma delas escreveu uma carta de recomendação e Ana foi aceita no mestrado em Harvard”, disse Dyett. “Depois entrou numa vaga concorridíssima na Organização Mundial da Saúde.” Aluno do 4.º ano de Engenharia Ambiental da Poli, Felipe Souza Lima, de 28, participou de programas com estudantes de Engenharia de Harvard. O primeiro tinha como foco energia, água e ambiente e foi realizado em São Paulo, Rio, Foz do Iguaçu e Piracicaba. O segundo, sobre desenvolvimento urbano, teve aulas e atividades em São Paulo, Paraty e no Rio.

Fomos à Billings e entramos em favelas ao redor da represa”, disse. “Entramos na Usina de Itaipu, chegamos a 1 metro da turbina. Eles acharam o máximo, lá nunca conseguiriam esse tipo de acesso.” Para Felipe, a diferença de formação ficou clara. “Eles têm uma visão muito ampla e diversificada dos problemas. O brasileiro é, digamos, mais simplista”, disse. “Mas o pessoal de lá não tem muita ideia de como atacar problemas na prática.” Já Patrícia Aguiar, de 22 anos, que está no 5.º ano de Engenharia Ambiental na Poli, fez o último curso de verão imersa em problemas entre Rio e São Paulo. “Pude conhecer melhor os problemas brasileiros. Os estrangeiros estavam muito abertos a entender como os brasileiros percebiam as coisas, muito mais do que eu imaginei”, diz. Segundo ela, a experiência também foi importante para desmistificar o peso que o nome da universidade estrangeira carrega. “Eu já tinha ouvido falar que não é muito difícil o curso e que mesmo sendo de Harvard não é um ‘bicho de 7 cabeças’ como se pinta. Talvez por sermos mais velhos do que os alunos que vieram, acho que tínhamos uma boa bagagem para debater os temas de forma nivelada”, avalia.


Fonte: O Estado de São Paulo, 28/03/2011 - São Paulo SP

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