terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A vida dura dos brasileiros que vão estudar fora do país e penam para ter o diploma reconhecido quando voltam para o Brasil
Lauro Neto
RIO - Para seguir a vocação de salvar vidas, os estudantes brasileiros que decidem estudar Medicina fora do país sofrem. Enfrentando por aqui uma concorrência que chega a 100 candidatos por vaga em faculdades públicas, e sem condições de arcar com mensalidades que ultrapassam R$ 4.000 nas particulares, eles tentam realizar seu sonho em terra estrangeira, mas, muitas vezes, vivem pesadelos reais, principalmente em países como Bolívia, Argentina e Cuba. Depois da luta para se formar no exterior, ainda têm o desafio de revalidar o diploma no Brasil. Em 2010, só dois dos 628 inscritos no projeto-piloto de revalidação do MEC e do Ministério da Saúde foram aprovados na prova prática. Antes de ir para a Bolívia estudar na Universidade Privada Aberta Latino-Americana (Upal), em Cochabamba, Shelyson Magalhães prestou vestibular duas vezes na UnB e na Escola Superior de Ciências da Saúde, ambas em Brasília.

- Como sempre quis estudar Medicina, mas no Brasil há uma concorrência grotesca nas públicas, e as particulares têm um valor exorbitante, juntei a vontade de aperfeiçoar o espanhol e conhecer outra cultura - justifica o estudante de 23 anos, três deles morando em Cochabamba. Hoje, ele paga R$ 250 de mensalidade e gasta R$ 600 com aluguel, transporte e alimentação. Mas conta que já passou por muito perrengue, a começar pela chegada ao país: de ônibus de Santa Cruz de la Sierra a Cochabamba, ele enfrentou barricadas de protestos bolivianos. - Tivemos que descer e ir andando por cinco quilômetros com as malas na mão, passando por quatro bloqueios, e pegar carona num caminhão pau de arara - lembra Shelyson. - Ali, aprendi que medicina é só para quem tem vocação. Muita gente desiste,
para no meio e volta. Shelyson persistiu e está indo para o quarto ano de estudos. Em 2010, ele começou a ter matérias práticas como histologia e aprendeu a dissecar. Segundo o estudante, na Upal há cerca de 300 brasileiros, o que representa 70% dos alunos. A cada semestre, entram cem estudantes, mas só se formam entre dez e 15.

- Nunca tive chance de conhecer o estudo no Brasil, mas acredito que a parte clínica não seja muito diferente. A estrutura da faculdade não é muito boa: é pequena e nova, como um colégio. Para teoria não faz muita diferença. Acompanho meus professores nas cirurgias. A Upal não tem hospital próprio, mas pratico em clínicas conveniadas - conta o universitário, que sonha ser pediatra, com especialização em cirurgia infantil. Natacha Antunes também tem 23 anos, mas desistiu de estudar na Bolívia depois que seu ônibus sofreu um acidente no caminho de Cuiabá, onde morava, para Santa Cruz de la Sierra.

- Os bolivianos dirigiam a noite toda mascando folha de coca para tirar o sono. A estrada era muito ruim, e o ônibus virou. Não veio nenhuma ambulância socorrer os idosos machucados, e tivemos que pegar outro ônibus velho até a cidade mais próxima. Já cheguei com vontade de ir embora - ela conta. Natacha também não gostou dos laboratórios de anatomia de uma faculdade particular boliviana que visitou. Mas não desistiu. Seguiu para a Argentina, onde estuda há dois anos na Universidade de Buenos Aires (UBA), depois de tentar vestibular no Brasil por três vezes: - Fiz cursinho, mas não consegui passar em nenhuma pública, e as privadas são muito caras. Medicina é o terror. Para cursar Medicina na UBA, ela precisou fazer um ano de 
Ciclo Básico Comum (CBC), obrigatório para todas as carreiras, em que se estudam disciplinas específicas como química, biofísica e pensamento científico, e outras gerais, como história da Argentina. A estudante completou o CBC em 2010, depois de passar sufoco com a agência que contratou para agilizar sua documentação e estadia. - Paguei o aluguel, e essa agência me botou na rua com 15 dias no país sem sequer saber o idioma. Para piorar, não estava inscrita no CBC e perdi meio ano - conta a universitária.

A paulista Daisy Cruz, de 24 anos, diz não passar tanto perrengue para estudar em Cuba. Ela decidiu ir para o país depois que não conseguiu ser aprovada nos vestibulares de Unesp, USP e Unifesp. Foi selecionada pela ONG Educafro para um processo seletivo da embaixada cubana no Brasil e fez um curso pré-médico em Havana, semelhante ao CBC argentino, antes de ingressar na Escola Latino-Americana de Medicina (Elam). - A maioria dos brasileiros que fazem Medicina em Cuba não teve formação para entrar numa universidade pública nem condições de pagar particulares. Isso não quer dizer que não temos capacidade - diz Daisy. Ela está no terceiro ano, quando os estudantes são incorporados à prática clínica e hospitalar. Daisy mora num alojamento da Elam em Camagüey e diz gastar no máximo R$ 100 por mês com todos as despesas. Reconhece as dificuldades de comunicação da ilha, mas diz valer a pena: - O curso é muito bom. O foco é a prevenção, mas também damos atenção à medicina curativa. Nosso objetivo não é competir com o mercado brasileiro, mas oferecer medicina de qualidade a todos de modo equitativo, baseados no Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil.

Fonte: O Globo, 22/02/2011 - Rio de Janeiro RJ

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